O direito processual tem sido um campo privilegiado aos novos experimentos
Soa como lugar comum a afirmação de que o direito brasileiro vem passando por profundas transformações e nesse novo cenário a supervalorização da autonomia da vontade individual vem ganhando papel de destaque. Como se diz na feira livre dos comentários da mídia, “o negociado tem prevalecido sobre o legislado”.
O direito processual tem sido um campo privilegiado aos novos experimentos, não só o processo civil e sua aposta nos meios alternativos de solução de conflitos, como também o processo penal, fortemente impactado pelos acordos de não persecução penal criados pelo pacote anticrime (Lei n. 13.964/19). A tais mutações concorrem diversas causas, sendo as mais evidentes a explosão de litigiosidade do cenário jurídico brasileiro e a notória incapacidade do Judiciário em dar conta de tão grave problema. No caso específico do processo penal, a superlotação carcerária e a grave violação aos direitos fundamentais daí decorrente também justifica a flexibilização consensual da aplicação da pena, que deveria ser a última ratio.
É bem verdade que o incentivo aos novos experimentos encontra guarida na própria Carta Política, que prevê, por exemplo, a criação de Juizados Especiais para o julgamento de infrações penais de menor potencial ofensivo, permitida inclusive a transação penal e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau. Ninguém duvida de que a autorização contida no art. 98 pressupõe o exercício da autonomia da vontade, mas também não há dúvida de que a criação dos Juizados Especiais busca, sobretudo, ampliar o acesso à justiça, um direito fundamental de natureza instrumental (art. 5º, XXXV, da CF).
De todo modo, um olhar mais atento para os institutos processuais consensuais aponta duas características fundamentais, uma espécie de padrão normativo que não se deve ignorar: a primeira, consistente na inafastabilidade da intervenção judicial quando do consenso advenha alguma restrição a direitos fundamentais (a liberdade, por exemplo); a segunda, resultante da constatação de que em temas de interesse público e que tocam direitos indisponíveis, o consenso só pode ser validamente reconhecido quando atendidos requisitos legais inafastáveis.
Relativamente à intervenção do Juiz no espaço de consenso, o exemplo mais notório é o da já mencionada transação penal, um caso exemplar de jurisdição voluntária (no processo penal) em que a atuação judicial é necessária à eficácia do acordo. Exemplo mais recente vem da Lei Anticrime, que possibilita os acordos de não persecução relativamente a infrações penais cometidas sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, e mais uma vez a lei reserva ao Judiciário um papel de relevo (art. 28-A do CPP, com a nova redação dada pela Lei 13.964/19).
Para desgosto de alguns comentadores, não são nada desprezíveis os papéis do Juiz nos acordos de não persecução penal, que deve verificar a sua voluntariedade e legalidade (§ 4º) e pode rejeitar a sua homologação se considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições acertadas entre o MP e o investigado e seu defensor (§§ 5º e 7º). A nosso juízo, justifica-se a intervenção judicial em razão do estatuto constitucional das liberdades públicas, que só podem ser restringidas mediante a observância do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF).
No campo do processo civil será menos comum esse “ativismo” judicial desenhado pelo próprio legislador, ao menos em regra. Mas mesmo aqui o Juiz não é uma “estátua de pedra” e pode recusar a homologação de acordos prejudiciais a interesses de incapazes, por exemplo (imagine-se um acordo de alimentos que seja claramente insuficiente ao atendimento das necessidades do alimentando). Tem-se aqui um misto de indisponibilidade do direito material em jogo e de disponibilidade relativamente ao modo de sua satisfação, o que também se verifica relativamente aos direitos transindividuais (v.g., a reparação integral do dano ambiental é inegociável, mas o prazo e a forma de reparação podem ser objeto de ajustes de conduta).
Sobre a necessidade de observância de requisitos legais como condição sine qua non à construção de alguns consensos, servem-nos os mesmos exemplos acima referidos (para a celebração da transação e do acordo de não persecução penal o investigado deve ter bons antecedentes e conduta social e personalidade adequados etc). Do mesmo modo, na colaboração premiada, outro exemplo, é necessária rigorosa vassalagem aos requisitos legais, uma vez que as hipóteses de seu cabimento e os “prêmios” do delator estão previstos em lei. A autonomia da vontade, também aqui, encontra claros limites legais, nem sempre observados por um certo voluntarismo quixotesco.
Mesmo no sacrossanto campo dos contratos, em que a autonomia da vontade reina, algumas cláusulas são nulas de pleno direito (art. 51 do CDC) e a fruição do direito de propriedade, base da ideologia liberal, está condicionada ao atendimento de sua “função social” (art. 182, § 2º, da CF). Enfim, o que importa perceber é que o estabelecimento de requisitos legais e constitucionais de atendimento inafastável significa que a autonomia da vontade não é absoluta, ou seja, para usar a imagem de um filósofo do Séc. XVII (Spinoza), a autonomia da vontade “não é um império dentro de um império”. Aliás, seria no mínimo questionável falar em “autonomia da vontade individual” por parte de órgãos, instituições e agentes públicos (Promotores de Justiça, advogados públicos etc), regidos pelo Princípio da Legalidade (art. 37 da CF).
Na Lei de Improbidade Administrativa, a necessidade de intervenção judicial como requisito à aplicação das sanções nela previstas (perda do cargo ou função, suspensão dos direitos políticos, multa civil etc) aparece claramente no parágrafo único do art. 12 (“Na fixação das penas previstas nesta lei o juiz levará em conta a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente”) e também resultava da vedação expressa da celebração de transações, acordos e conciliações (art. 17, § 1º, em sua redação original). Por conta disso, sempre se sustentou a aplicação do princípio nulla poena sine judicio nesse importante ramo do direito sancionatório, a permitir corretas aproximações entre a LIA e o CPP. Embora criticada, a vedação à celebração de transações, acordos e conciliações encontrava a sua justificativa na gravidade das sanções previstas no art. 12 da Lei, as quais tangenciam o exercício de direitos políticos e o próprio regime democrático.
As críticas ao rigor da vedação legal, de qualquer forma, também eram justificáveis uma vez que um mesmo fato, dada a independência entre as instâncias criminal, cível e administrativa, poderia comportar a celebração de transação penal, mas não a celebração de acordos no âmbito da LIA (por exemplo, o crime previsto no art. 315 do CP). A incongruência passou a ser mais preocupante a partir do momento em que o MP brasileiro intensificou o uso da delação premiada, a gerar insegurança jurídica em razão da impossibilidade de transporte do acordo penal ao campo da improbidade.
Todo esse cenário parece ter mudado com o advento da Lei Anticrime. Embora não previsto no PL original, a redação conferida ao § 1º do art. 17 pela Lei n. 13.964/19, numa notável “reviravolta”, agora admite expressamente “a celebração de acordo de não persecução cível, nos termos desta Lei”. Em complemento, o § 10-A esclarece que “havendo a possibilidade de solução consensual, poderão as partes requerer ao juiz a interrupção do prazo para a contestação, por prazo não superior a 90 (noventa) dias”. Assim, ao menos aparentemente, a tão criticada vedação legal encontrava o seu fim, muito embora pela porta dos fundos de um projeto concebido para tratar de outros temas.
Mas há um complicador representado pelo veto presidencial ao art. 17-A, justamente o dispositivo que previa os requisitos para a celebração do acordo (“nos termos desta lei”). E que requisitos eram esses? Embora de forma bastante econômica e deixando em aberto diversos problemas relevantes, a redação aprovada pelo Congresso Nacional previa que o acordo celebrado, exclusivamente, pelo MP deveria garantir, no mínimo, o ressarcimento integral do dano (art, 10 da LIA), a perda (“reversão”) da vantagem ilicitamente obtida (art. 9º) e o pagamento de multa de até 20% (vinte por cento) do valor do dano ou da vantagem auferida, atendendo a situação econômica do agente, tudo a ser objeto de aprovação pelo órgão competente para apreciar as promoções de arquivamento do inquérito civil e posterior homologação judicial.
Assim, o texto aprovado pelo Legislativo admitia a celebração de acordos e transações em todas as hipóteses de improbidade administrativa (arts. 9º, 10 e 11 da LIA), desde que garantido, ao menos, os resultados acima mencionados. Tratando-se de um patamar mínimo, abria-se a possibilidade de aplicação consensual de outras sanções, como por exemplo a perda de cargos ou funções públicas e mesmo a suspensão de direitos políticos.
Em sua mensagem de veto (Mensagem n. 726/19), a Presidência da República argumentou que o texto aprovado geraria uma situação de assimetria entre o MP e a pessoa jurídica de direito público lesada, que, ao teor do art. 17 da própria LIA, é também legitimada ao ajuizamento de ação judicial pela prática de ato de improbidade administrativa. De fato, o microssistema de tutela dos direitos transindividuais, historicamente, se apoia na legitimação extraordinária e concorrente de órgãos estatais e da sociedade civil e com a Constituição Cidadã tal opção passa a contar com expressa previsão (art. 129, § 1º).
Isso significa que, embora com inegável protagonismo, o MP não é o legitimado exclusivo à defesa dos direitos transindividuais, o que amplia consideravelmente as portas do acesso à justiça. Ora, sendo o direito à probidade um direito difuso de status constitucional (art. 37, caput e § 4º da CF), não faria qualquer sentido conferir ao MP a exclusividade de sua tutela e bem por isso o art. 17 da LIA, não alterado pelo Pacote Anticrime, legitima também a pessoa jurídica de direito público lesada à propositura da “ação principal”. Está correto, portanto, o veto presidencial uma vez que quem pode o mais deve também poder o menos.
Ocorre que com o veto presidencial os legitimados estão autorizados à celebração de acordos de forma discricionária (não há requisitos legais), inclusive com a possibilidade de flexibilizarem a reparação integral do dano e a reversão da vantagem indevida e de afastarem qualquer sanção. É o que resulta da interpretação literal da atual redação do art. 17 da LIA, mas parece bastante claro que tal conclusão viola o texto constitucional, o qual impõe a aplicação de sanções sempre que comprovada a prática de atos de improbidade administrativa (art. 37, § 4º:” Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos …”).
Além disso, a celebração discricionária de acordos e transações no campo da improbidade viola o princípio da proporcionalidade, que além de vedar os excessos legislativos afrontosos aos direitos fundamentais, contém também a proibição da proteção deficiente (ou insuficiente) de bens jurídicos tutelados pela Carta Política, como é o caso do direito fundamental à probidade. Realmente, um acordo muito “generoso” pode vulnerar a proteção à probidade; já um acordo muito “duro” pode violar o regime democrático (imagine-se um acordo que preveja a perda de um mandato eletivo em curso).
Em suma, da forma como hoje redigido, o texto legal autoriza apenas aquilo que já se admitia mesmo com a vedação original do § 1º do art. 17, vale dizer, a celebração de acordos não sancionatórios (forma e prazo da reparação integral do dano), os quais não afastam a persecução. Daí porque toda cautela é pouca na interpretação da lei, é preciso muito cuidado no andor porque o santo é de barro…
ROGÉRIO PACHECO ALVES – Doutor em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense. Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro.
Publicado no JOTA.INFO